Mundo vive movimento de retorno das estatais; casos também ocorrem no Brasil e referendam importância das lutas contra as privatizações
Privatizar empresas pode trazer consequências muito graves para o País, especialmente quando se fala naquelas que são estratégicas para o desenvolvimento nacional e qualidade de vida da população. Não se trata unicamente de preservar empregos ou manter a soberania: também no dia a dia há questões fundamentais que são prejudicadas, tais como preço e qualidade dos serviços oferecidos.
Tanto isso é verdade que o mundo vive um movimento de reestatização em vários setores (veja mais na cartilha Empresas Públicas – Fakes e Fatos). O próprio Brasil, que nesse momento assiste a várias iniciativas de privatização lideradas pelo governo Bolsonaro, é vice-líder no ranking mundial de reestatização de água e saneamento básico, com 78 casos de empresas que voltaram a ser administradas pelos governos. Na França, país campeão, 106 empresas já foram reestatizadas.
Entre os problemas apontados para a reestatização das empresas estão tarifas altas, falta de transparência, evasão de divisas (muitas companhias estão em paraísos fiscais para onde enviam os lucros), valores excessivos pagos aos executivos e elevados dividendos repassados aos acionistas das empresas. O quadro é de financeirização e, consequentemente, de priorização de retorno aos investidores, em detrimento da qualidade dos serviços prestados.
São dados do Transnational Institut (TNI), que mapeou 267 casos de reestatizações (excetuando os municípios brasileiros) ocorridos a partir do ano 2000 na maioria nas nações desenvolvidas. Há outros exemplos de reestatização de serviços de energia, transporte, resíduos, educação, saúde e administração local, totalizando 835 contratos retomados em 45 países. No Brasil foram encontrados exemplos de reestatização em 77 municípios do Tocantins e um de Itu, no interior do estado de São Paulo.
Em 2017, dos 5.570 municípios brasileiros 245 tinham contratos de concessão de água e esgoto repassados para a iniciativa privada. E quem são os donos? Segundo pesquisa do Instituto Mais Democracia intitulada “Quem são os proprietários do saneamento no Brasil?” 58% dos grupos atuantes no setor possuem fundos de investimento e instituições financeiras entre seus controladores. Dois dos maiores – BRK Ambiental (ex-Odebrecht Ambiental) e Iguá Saneamento (ex-CAB, da Queiroz Galvão) - são totalmente controlados por instituições financeiras.
O capital estrangeiro está presente em 27% das empresas, participando como sócio majoritário ou minoritário de quatro líderes do segmento: Aegea (Fundo Soberano de Cingapura e Banco Mundial como minoritários), BRK (controlada pelo Fundo canadense Brookfield), Grupo Águas do Brasil (corporação japonesa Itochu, minoritário) e GS Inima (controlado pela sul-coreana GS). E essa presença está em expansão, pois como estão perdendo espaço em seus países de origem, essas companhias procuram outros territórios para lucrar: a gigante francesa Veolia, por exemplo, anunciou planos de compra de ativos na área de saneamento no Brasil em 2019 - o Programa de Parceria para o Investimento (PPI) do governo golpista de Michel Temer prevê a privatização de 17 companhias de saneamento pertencentes aos governos estaduais, indo na contramão do que se passa no mundo e, como se pode conferir abaixo, também nacionalmente.
“Privatizar é entregar a empresa, o bem público, ao capital privado, muitas vezes com controle de instituições financeiras. Essas empresas não têm foco no cidadão como as públicas, mas sim no consumidor e, para lucrar, abrem mão do investimento e da qualidade. Muitas vezes até da segurança, como vimos nas tragédias da Vale. O que temos que fazer é garantir o que é público para todos, com qualidade”, aponta o presidente do Sindicato, Belmiro Moreira
Casos em que o Brasil reestatizou no setor de saneamento
Itu - o contrato de concessão assinado em 2007 pertencia ao grupo Bertin e foi retomado pela Prefeitura menos de 10 anos depois. O poder público local alega que os investimentos na ampliação da oferta de água potável não estavam sendo cumpridos, até que veio a crise hídrica e impôs uma situação de seca total aos moradores. Foi o mais longo racionamento da história da cidade, entre fevereiro a dezembro de 2014. A Prefeitura interveio em 2014 e, em 2017, criou a Companhia Ituana de Saneamento (CIS), cujo slogan é: Agora a água é nossa! A autarquia cuida também do esgotamento sanitário.
Tocantins - Foi a única unidade da federação a privatizar sua Companhia Estadual de Água e Esgoto, a Saneatins. O processo teve início em 1998, com aporte de 30% efetuado na estatal pela Empresa Sul-Americana de Montagens (Emsa), grupo de Goiás, que passou a deter o controle da empresa em 2002, após novos aportes. A partir de 2011, a Saneatins passou para a Odebrecht Ambiental (hoje BRK Ambiental, controlada pela Brookfield). Antes da mudança de controle para a Odebrecht, a insatisfação com o serviço já existia, tanto que, em 2010, o governo estadual criou uma autarquia (Agência Tocantinense de Saneamento – ATS) para ser uma alternativa pública para localidades atendidas pela iniciativa privada. Até esse momento, a Saneatins atendia 125 municípios. Ao todo, 77 deles migraram para a ATS, que passou a atender também as áreas rurais do estado, enquanto a empresa privada se manteve na parte urbana de 48 municípios, entre eles os mais populosos, ou seja, onde as receitas são mais robustas. Em que pese a análise de especialistas do setor de que a reestatização no Tocantins ocorreu porque a iniciativa privada “devolveu” ao estado os municípios que não lhe interessavam, o caso contém muitos ensinamentos.
Para começar, o que ocorreu primeiro foi a insatisfação com os serviços prestados. Mesmo entre os 48 municípios que continuam até hoje sendo atendidos pela iniciativa privada havia reclamações. O caso do Tocantins não comprova a alegada eficácia da iniciativa privada, sobretudo nas localidades menores e nas áreas rurais.
Insatisfação – O estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio) Privatização de Companhia Estadual de Saneamento: A Experiência Única do Tocantis – Lições para Novos Arranjos com a Iniciativa Privada, de 2017, indica uma evolução dos serviços bastante insatisfatória. De 1998, quando a Emsa aportou recursos teoricamente para que a Saneatins aumentasse seus investimentos, a população atendida por rede de água era de 65%, passando para meros 73%, em 2010, ano de criação da ATS.
Em 2015, a taxa passou para 83%. Já o serviço de esgoto, que era inexistente em 1998, passou para 13%, em 2010; e para pífios 22%, em 2015. Nos 48 municípios controlados pela Saneatins, este percentual é de 32%, também muito baixo, considerando o tempo decorrido de 16 anos de atuação. O estudo critica a ineficácia da regulação dos contratos e explica que “os municípios de pequeno porte são os mais prejudicados, pois além de menos lucrativos, têm carência de apoio do estado, pouca capacidade técnica e quase nenhuma força política para negociar com o prestador dos serviços de saneamento”.
Assim, apenas quatro municípios tocantinenses, os únicos que superam 50 mil habitantes, conseguiram alterar os contratos no período entre 1999 e 2014: Palmas, Araguaína, Gurupi e Porto Nacional. A capital, Palmas, conseguiu renegociar em 2013, quando a Saneatins precisava da anuência da prefeitura para obter um empréstimo de R$ 240 milhões da Caixa. Foi quando finalmente conseguiu a priorização de bairros carentes e com riscos de alagamento na implantação da rede de coleta e tratamento de esgotos e também a instituição de um comitê gestor para fiscalizar e decidir as áreas prioritárias de expansão dos serviços.
“Com as alterações no contrato de concessão e viabilização dos investimentos, houve uma expansão rápida da cobertura dos serviços na cidade, de 89,9% em 2013 para 99,9% em 2015, no abastecimento de água; e de 43,5% para 71,1% no esgotamento sanitário, no mesmo período”, observam Raquel Soares, Irene Altafin, Maria Teresa Duclos e Samuel Arthur Dias, autores do estudo. Mesmo a tese da “devolução” dos 77 municípios, alertada pelo ex-secretário Nacional de Saneamento Ambiental, Abelardo Oliveira Júnior, traz lições que devem ser observadas neste momento em que se tenta privatizar outras companhias estaduais de água e esgoto, como a Cedae, do Rio de Janeiro. Os riscos para os municípios sem força política diante do gigantismo das transnacionais não podem ser ignorados.
Mais - Enquanto isso, a lista de casos de reestatização no Brasil continua engordando, com a entrada de mais duas cidades fluminenses na lista: Santo Antônio de Pádua, que rompeu o contrato com a Conasa em 2017 (o que está sendo contestado pela concessionária) e São João de Meriti, onde Aegea e (novamente) a Conasa interromperam temporariamente o serviço de esgoto, também em 2017. Caso não haja reversão, a lista brasileira de reestatização na área de saneamento subirá para 80.
A lista mundial também tende a crescer. No Reino Unido, meca das privatizações nos anos 1980, 83% da população defendem a reestatização da água, segundo pesquisa do Instituto Legatum realizada no segundo semestre de 2017.
Leia cartilha Empresas Públicas – Fakes & Fatos no link:
Redação, com informações do site da CUT nacional e Comitê Nacional em Defesa das Empresas Públicas