Excluídas do sistema bancário tradicional, trabalhadoras autônomas são a maioria no crédito solidário, onde a reciprocidade é a alma no negócio
É comum no sistema bancário o uso do termo reciprocidade. No caso das instituições financeiras tradicionais, significa que o gerente dará descontos nas tarifas e crédito aos clientes que possuem contas com saldos expressivos. Ou seja, o banco lucra com a movimentação bancária do cliente, que por sua vez recebe benefícios por isso.
Mas os bancos não inventaram a roda. Reciprocidade é uma relação própria entre pessoas, um substantivo feminino, e são as mulheres a própria matéria de algo tão cotidiano para elas. Enquanto no sistema financeiro comercial a garantia para créditos e descontos é a conta bancária dos próprios clientes, na economia solidária são as relações pessoais as responsáveis por manter a economia viva e as pessoas ativas.
No serviço de microfinança do Banco do Povo e Crédito Solidário (BPCS) - que atende essencialmente empreendedores populares de baixa renda - as mulheres formam 67% da carteira de clientes. Para que as trabalhadoras autônomas peguem os empréstimos com juros muito abaixo do mercado e sem a necessidade de ter o “nome limpo”, é necessário que elas se organizem em grupos. O grupo é a própria garantia: se alguém não puder pagar, uma ou todas arcam com o déficit. Aqui o fiador se chama sororidade.
Mulheres, uni-vos! - As causas que levam as mulheres a unirem-se para empreender têm como pano de fundo todo tipo de exclusão. Na maioria dos casos, elas são as responsáveis por incontáveis cuidados com a família, a casa, os filhos, e também com a renda.
O levantamento feito pela pesquisadora da Unicamp, a economista Marilane Teixeira, mostra que desemprego entre as mulheres negras cresceu durante a crise econômica. Entre o quarto trimestre de 2014 e igual período de 2017, a taxa de desocupação entre elas passou de 9,2% para 15,9%. Já o desemprego entre as mulheres brancas bateu 10,6% no final do ano passado, alta de 4,4 pontos em relação aos últimos três meses de 2014, quando a taxa de desocupação foi de 6,2%.
Em Mauá, cidade periférica da região metropolitana de São Paulo, o Banco do Povo emprestou 4,2 milhões de reais para 367 beneficiários em 2017. Perto de um banco convencional o valor é irrisório, mas se injetado em uma única comunidade, onde o dinheiro será ganho e gasto no mesmo local, o potencial econômico se agiganta.
A pernambucana Francisca Aparecida Xavier Correia da Silva, 58, é proprietária de um minimercado no Parque das Américas, em Mauá. Antes faxineira, sua maior preocupação era sustentar a casa e cuidar de uma das filhas doente. De imediato, a solução foi colocar uma prateleira de metal com uns poucos produtos de necessidade básica na garagem de casa.
“Eu tinha trabalho fixo, mas ela (a filha) entrava em crise e eu não podia ir. Não dava mais. Deixei minha filha cuidando da vendinha em casa, e eu ia vender outros produtos no trem. Era correria. Antes de entrar no trem eu ainda vendia café e bolo na porta da estação. Peguei revista da Avon, da Jequiti para vender. Fazia tudo que conseguia para conseguir me equipar e poder ficar com ela em casa”.
Francisca soube do banco e investiu na ideia. Formou o grupo junto de outras cinco comadres do bairro e seguiu com o plano. A garagem já não podia mais servir como comércio: com o dinheiro que pegou emprestado alugou um espaço na mesma rua, comprou um forno e mais prateleiras, um freezer, fortaleceu o estoque e montou o Mercadinho da Francisca. “Agora as coisas estão bem. Consigo ficar com a minha filha e quero expandir o mercadinho”.
Maria Rodrigues da Silva, 60, é uma das comadres de Francisca, vizinha de bairro desde que se mudou da Bahia, há várias décadas. Veio para São Paulo depois de se separar e desde então sua principal fonte de renda era o trabalho como faxineira. "Sempre quis largar a faxina. É um trabalho muito penoso. Já fazia alguns salgados, mas muito pouco. Só depois que peguei os empréstimos junto com as meninas que consegui viver só disso."
O primeiro empréstimo de Maria foi do valor de 1,200 mil e foi usado basicamente para comprar os ingredientes dos salgados e bolos. Em um ano ela conseguiu pegar ao menos três empréstimos e se equipou. Arrimo de família, a cozinheira e empreendedora afirma que, apesar dos pesares, é muito feliz com o que faz. No Parque das Américas, Maria vai à festa, leva o bolo e recebe pelo trabalho.
Anos 1990 - O BPSC foi criado em 1988, ano em que o País - assim como agora - enfrentava um período de recessão. A taxa de desemprego naquele ano era de 9% - 6,6 milhões de pessoas na época -, e seguia crescendo ano a ano. Hoje, passa dos 13%, com 13,7 milhões de pessoas sem emprego.
Ao todo, falta trabalho para 27,7 milhões de pessoas, com 24,7% do total da força de trabalho subutilizada. Essa taxa agrega os desempregados, os subocupados por insuficiência de horas e a força de trabalho potencial.
O diretor executivo do banco Fábio Maschio conta que na época a ideia era promover ocupação para os desempregados em comunidades onde a atividade autônoma poderia ser uma alternativa ao cenário de esgotamento da economia e do emprego.
“Nos anos 2000 nós perdemos relevância em função de outros instrumentos públicos de desenvolvimento social e o emprego melhorou bastante. É curioso que 20 anos depois nós voltemos a ganhar relevância. No último ano crescemos 22% e só não crescemos mais porque falta investimento para o próprio banco. Se tivéssemos mais recurso, emprestaríamos mais”, reconhece Maschio.
Trabalho remunerado - Segundo a agente de crédito Clarice de Oliveira Rosa Falcão, responsável pelo trabalho direto com as freguesas, dificilmente grupos formados apenas por mulheres não funcionam bem. Elas são pontuais com os pagamentos e eficientes em gerenciar o grupo e eventuais crises. Trabalho que de modo geral já fazem dentro de casa, e sem receber por isso.
“As mulheres sempre estão em condições mais vulneráveis. Em uma casa de baixa renda quem tem emprego fixo é o homem. Elas sempre estão com nome sujo, muitas vezes por dívidas que nem foram elas que fizeram. Muitas se separam, o marido vai preso ou perde o emprego formal, e elas têm de assumir integralmente as contas da casa. Começam vendendo poucas coisas como um bico do bico, mas aos poucos percebem que podem crescer e crescem”.
É muito comum, conta Clarice, que os grupos de mulheres se articulem para além das faturas. Elas se juntam para comprar mercadorias – e conseguir melhores preços -, conversam sobre os negócios, doam seu tempo para as outras sem exigências, mas com a certeza de que a recíproca é verdadeira.
Fonte: CartaCapital